sexta-feira, 21 de agosto de 2009

AUTORRETRATO 2 (O CÂNTICO NEGRO)













Aos 40 anos .............. - - - .......... Com menos de 1 ano

A vida não se resume às coisas belas. Meu “primeiro” auto-retrato (ainda com hífen, ainda sem dois erres) foi carregado de boas lembranças, mas a verdadeira face humana é a da queda. Aprendi que existem marcas que ficam pela vida inteira quando aos doze anos de idade tomei um tapa na saída do colégio. Uma vez levei um “fora” de uma menina e pensei ser vítima de uma conspiração do mundo; era o anúncio da megalomania. Durante a primeira comunhão, vi um colega empurrar outro do alto do escorregador da praça, passei a desconfiar dos efeitos da catequese. Uma das diversões da minha infância era roubar adesivos dos carros; os “filhinhos de papai” são marginais com blindagem. Antes da BR, os ônibus que iam para Pelotas paravam por meia hora na Rodoviária do Matarazzo. Eu nunca suportei o cheiro de leite quente e até hoje tenho náuseas com a visão da nata boiando. No primeiro porre que tomei o vômito vinha em jorros, deu para encher uma bacia inteira. A minha segunda relação sexual foi com uma prostituta, à primeira não. É claro que eu tive uma paixão platônica por uma professora. Eu sempre fui míope. Tive tifo aos dezesseis anos e hepatite aos dezenove, o meu fígado é um milagre de perseverança. Um dos meus versos preferidos é o que diz “eu não vou por aí, só vou por onde me levam os meus próprios passos...” Quando o meu avô morreu, fiquei pensando em como seria a vida do meu pai sem a vida do pai dele. Certa vez, no Herval, tive uma faca pressionada contra o estômago. O medo dá calor. É inútil sonhar com uma vida “romântica”, sem brutalidade ou ignorância, para quem mora aqui no Sul. O entardecer na campanha é melancólico, me faz voltar correndo pra urbe. Dizem que o meu pior defeito é a vaidade, não é, é o de negar evidências. Têm muita gente que me odeia apenas pela aparência, imagina se conhecessem o resto. Eu sou da “velha esquerda” e não gosto de nada que lembre a antiga Arena. As derrotas nas eleições municipais de 1988 e nas nacionais de 1989 liquidaram com a minha geração. Eu fui reprovado no único concurso público que prestei. Todos os dias eu me comprometo em nunca mais julgar as pessoas. Não é verdade que a vida inicia aos quarenta, o que começa é a acovardamento. Espero que alguém se disponha um dia a escrever sobre a história dos derrotados do Arroio Grande. É preciso beber muito para agüentar a maioria das pessoas. A “Terra de Mauá” se transformou no paraíso dos medíocres que ocupam as esquinas e a mídia local toda a semana. Eu não vou estar mais vivo quando as verdadeiras transformações sociais começarem a acontecer por aqui. Queria ouvir uma liderança popular dizer – em vez dos demagogos que vivem de repetir que são “amigos do povo” -, como na canção do Paez: “No todo está perdido! Yo vengo a ofrecer mi corazón!” Queria poder estar ao lado do povo, queria participar das transformações, queria poder oferecer o meu coração, mas ele está cada vez mais coberto de uma impenetrável neve tropical...


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