quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

BLECAUTE

Pouca gente lembra, mas há trinta anos, aproximadamente, lá pelo final da década de 70, faltou luz durante mais de uma semana em Arroio Grande.
Começou por esta mesma época, às vésperas do Natal, e entrou janeiro do ano seguinte adentro.
A origem do apagão foram uns geradores que estouraram lá pela Estação Basílio, num local de difícil acesso, e que tiveram as suas peças de reposição arrastadas sobre enormes pranchões, pelo meio do mato, até chegarem ao seu destino, quase uma semana depois.
Foi o caos. Primeiro sem luz, em seguida sem água e sem comunicação, a cidade teve que se acostumar com carências que julgava superadas: – falta de líquidos e alimentos frescos, ausência de chuveiro elétrico, de televisão... –, e mergulhou literalmente na escuridão do primitivismo.
Os dois primeiros dias todo mundo agüentou, na expectativa da solução que deveria vir a qualquer momento; deveria, mas não veio.
Passado o fim-de-semana - onde uns foram para a Praia, alguns para a Campanha, e outros para onde a luz fizesse menos falta -, quem pôde se mandou definitivamente, mas quem ficou comeu o pão que o diabo amassou, e comeu no escuro, sem nem enxergar direito o que mastigava.
Mais de uma semana sem luz, foi realmente um drama, mas que teve momentos divertidos, teve.
O Eraldo, rápido como sempre, tomou a dianteira; conseguiu um gerador emprestado e passou a ser o único da cidade com cerveja gelada, com as pessoas bebendo de tudo, até as Malt 90 - uma “coisa” fermentada, de rótulo verde, que tentou ser cerveja – as últimas que sobraram. Até gelo - que valia muito naquele momento - o Eraldo tinha, embora em doses limitadas, mas diariamente, lá na Top Set.
A maioria da cidade, porém, sofreu com o blecaute. Alimentos que estragaram, congelados que derreteram, sujeira por todo lado e uma verdadeira romaria diária para tomar banho no arroio, que se transformou num imenso chuveiro coletivo, com turbas de freqüentadores que deixavam as águas do Grande branquinhas da espuma dos sabonetes.
Uma parte da nossa turma, liderada pelo Luís Carlos Negrão, resolveu acampar em definitivo às margens do arroio, com liquinhos, fogareiros, colchonetes, e muita, mas muita cachaça, além do violão que iluminava as noites enormes e a própria alma dos acampados.
Estava fundada a República do Salso, do “lado de lá” do arroio, que recebeu a fina flor da bagaceira da cidade, entre borrachos, cantores, declamadores, aventureiros, ou simplesmente curiosos, e até abigeatários amigos, já que não era incomum aparecer por ali uma ovelha, um leitão ou uma penosa, todos achados meio que por acaso na escuridão da noite.
O ano que terminou sem luz, o final de ano que iluminou a minha mocidade. Quem viveu não vai esquecer o Natal mais solidário que jamais tivemos, quando nos comunicamos como nunca na cidade que ficou às escuras por mais de uma semana.
Foi um bom fim de ano, aquele. Numa época em que a gente não precisava ainda dos orkut para chamar aos outros de Amigo...

domingo, 21 de dezembro de 2008

DUAS HISTÓRIAS ONDE O DINHEIRO NÃO TEVE A MÍNIMA IMPORTÂNCIA




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Anos 70, época ainda do movimento hippie, revolução dos costumes, anos de chumbo por aqui, o Pedro Bittencourt, o Zéca do Valentim, o Zé Paulo e o Camões Avirelis, depois de uma excelente noitada, saem sem dormir do Arroio Grande e rumam para a Praia do Hermenegildo, em busca de sabe se lá o quê...
Depois do atalho por Santa Isabel, já na BR, lá pela altura da Capilha, o Opala Azul do Pedro acusa a iminente falta de gasolina; o Posto Ipiranga, no Taim, torna-se parada providencial.
Chegados ao Posto, mais cerveja, o Pedro pede Vinícius de Moraes, o Zé Paulo tira o violão do porta-malas, o Zéca prepara o vozeirão e a cantoria rola solta em plena beira de estrada.
Terminado o abastecimento, o Avirelis, declamando o “Soneto de Fidelidade”, se antecipa ao Pedro para pagar a conta. Aproxima-se do bombeiro, retira o equivalente a uns R$ 200,00 (em valores de hoje, óbvio) e alcança as notas, exclamando tropegamente: – Podes ficar com o troco, que hoje eu ‘to’ apaixonado! O rapaz, olhando àquele bando de loucos, já de saco cheio com a bagunça, responde ao Camões: - O Sr. ta é bêbado, a essa hora da manhã! O Avirelis espicha a mão, retoma o dinheiro, conta nota por nota e entrega o exato valor marcado na bomba para o funcionário: - Ta aqui o pagamento certinho; me dá o troco de volta que tu não tem sensibilidade. E embarca no Opala, ofendidíssimo.
Então não dava para perceber que tudo aquilo era uma demonstração de paixão? Paixão pela arte, paixão pela liberdade, paixão pela vida... Onde já se viu confundir tamanha paixão com bebedeira, onde já se viu!?!
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Verão de 1986, preços congelados pelo “Plano Cruzado”, saímos eu, o Birinha do Gita, o Kiko da Candinha e o Neneco Silveira a viajar pelo País e fomos até a Praia de Guarapari, no Espírito Santo. Lá, íamos sempre ao mesmo Bar, somente para beber; coisa de uns quarenta chopes e um litro de uísque por noite, na média.
O Neneco, que havia recebido uma boa grana, resolveu inaugurar uma moda: nós dividiríamos a conta por três e ele daria a gorjeta, com um detalhe: a gorjeta seria sempre no valor igual ao do consumo. A cada noite, contas de três dígitos, e o Neneco sempre dando a mesma quantia para o garçom. A coisa ia assim até chegar o fim-de-semana quando fomos avisados que, por ser sábado, as mesas somente seriam ocupadas por quem fosse jantar, o que não era o nosso caso, já que apenas bebíamos, no máximo beliscando algum petisco.
Já nos preparávamos para sair quando o nosso garçom de todos os dias, um chileno de Valparaíso, percebendo que iríamos embora, virou-se para o gerente e gritou, num portunhol claríssimo: – Acá! Mesa once para los muchachos! – dizia, apontando para nós – E pide cuatro filés com fritas e no necessita servir, que com ellos yo me acerto! – garantiu, o que acabou mesmo acontecendo.
Ao final, não comemos nada, pagamos o mundaréu de bebidas e o Neneco deu a gorjeta de sempre. E o chileno acertou a conta, fácil, fácil, fácil...

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

RUA DA BAHIA, RUA DA BAHIA... (QUE NÃO, QUE NÃO, QUE NÃO ME SAI DO PENSAMENTO, AI, AI...)


Rua da Bahia, Arroio Grande, República dos Gumercindos, Brazil, Mundo, Via Lactea...
Dia 12 do 12 do último ano, do começo da madrugada até o clarear do dia...
O encontro da Velha Guarda, das Novas Gerações e das turbas mais representativas
"da mente insana dos amigos, que infernizam a cidade..."
As presenças reais, evocadas e invocadas que aparecem e desaparecem a todo o momento, sem nunca deixar de estar presente...
Os das fotos (abaixo), os de fora da foto (ao lado, com certeza!), e o da foto acima, o poeta, o criador, o mito, o eterno...
Rua da Bahia, 12/12/2008 - 33,333 anos depois - tudo tão diferente e tudo ao mesmo tempo igual; tudo novo e tudo tão repetido; tudo de novo, como se nunca tivesse deixado de existir...

domingo, 14 de dezembro de 2008

"AS VERDADEIRAS"

Numa época bem anterior a chamada globalização, onde as “coisas” modernas custavam a chegar ao Brasil, mais ainda aqui nesta zona de fronteira, eu tive a felicidade de sair por aí e acabei me deparando com “novidades” que só chegariam nesta paróquia mais de uma década depois.
Do código de barras à esteira rolante no caixa dos supermercados, das pílulas alimentares à bebida que gela ao abrir da lata, eu vim a conhecer a cerveja “sem álcool”, uma enorme novidade há vinte anos atrás. Entusiasmado com a descoberta, gastei “o que não tinha” e comprei doze garrafas da franco-holandesa “Buckler”. Experimentei uma e guardei as demais na mochila para quando retornasse de viagem.
Só pensava no meu pai, cervejeiro por natureza, e que segundo contas do Neneco Silveira teria tomado um açude de bebidas durante toda a sua vida. “Um açudezinho pequeno”, de uns 100 metros cúbicos, esclarece o Neneco, pra não parecer que exagera.
Pois o Pedro Bittencourt estava em Pelotas quando eu retornei, louco para mostrar as novidades. Enquanto conversávamos, fui entregando os presentes que trouxera pra ele: - Um livro do Jules Laforgue – poeta francês nascido acidentalmente em Montevidéu – comprado num sebo de Paris; um postal antigo do cabaré Moulin Rouge; um vinho português; e as Buckler “sans alchool”, compradas em Lyon, sem dúvida algo diferente para aquela época.
O Pedro, exagerado como sempre quando diante de algo novo, ficou radiante, mas não quis experimentar nada sem antes convidar o Jacques Chiacchio, seu parceiro natural de cervejadas. Telefonou pro italiano que estava em Arroio Grande e combinou um encontro no fim de semana, pra desfrutarem juntos da “novidade”.
No sábado, o Jacques apareceu no meio da tarde no apartamento que o Pedro ocupava em cima das Lojas Mazza, no Centro de Pelotas; impaciente, mal esperava à hora de experimentar a tal bebida, já antecipando que não via nenhum fundamento em tomar um negócio que não fizesse efeito.
No início do Jornal Nacional, o Pedro considerou o momento adequado pra abrir as cervejas, como aperitivo antes da dupla sair pra noite; pra o Bar do Comercial, pro Vinícius, pra Bete ou pro Solón, num roteiro que não tinha hora pra terminar.
Aberta a primeira garrafa, cada um sorveu um longo gole, enquanto se olhavam sem fazer nenhum comentário.
Tomaram uma, duas, três... nove, dez, onze, e acabaram ligeirinho com o pequeno estoque.
Então o Pedro se virou pra o Jacques e perguntou provocativo: - “E aí, italiano, bebeste todas as cervejas sem álcool e não tens nada pra dizer?”. Ao que o Jacques, com a calma que o caracterizava, olhou pra o amigo e exclamou na maior tranqüilidade: - “Ué, muito boas, lógico, mas agora vamu pará com essa brincadeirinha e abre logo uma das verdadeiras!”
E continuaram tomando cervejas, pela noite e pela vida afora...

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

CERVEJEIROS

O Pedro Bittencourt e o Jacques Chiaccio, juntos, bebendo cerveja sem alcool?
Alguém consegue imaginar?
Pois isso realmente aconteceu. Uma vez, uma única vez, há quase vinte anos.
O resultado?
Pois eu vou contar na crônica de fim-de-semana - com o título de "As verdadeiras" -, aqui na página e no espaço do auto-retrato, às fls. 03 do Jornal A Evolução. É esperar e conferir.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

BOLINHO DE BATATA

Na crônica “O que há de bom!”, publicada no mês passado, escolhi como um dos símbolos do que existe de simples e bom na nossa cidade o bolinho de batata feito pela Dona Neta, que a gente encontra lá no Bar do Paulinho, ali próximo aos fundos do campo do Inter.
Isso fez com que algumas pessoas – ainda que sabedoras da excelência da cozinha da Dona Neta -, me questionassem sobre o porquê do bolinho de batata? Porque não pastel, ou croquete, ou sanduíche, ou mesmo algum prato de qualquer restaurante? Porque o bolinho de batata e não uma outra iguaria, qualquer salgado ou doce?
É que o bolinho de batata representa algo que realmente é simples e bom, podendo ser extraordinário, dependendo da mão que o encaminhe.
Uma receita prática e barata: farinha, ovos, guisado, e batatas, claro; um certo jeito pra tratar com a massa, paciência pra dar o tempo certo de fritura e, pronto, temos o petisco predileto de muitos brasileiros.
Não por acaso, as pessoas mais simples e bonitas com quem pude conviver – a Dona Candinha, paixão da minha infância, o Seu Duca, velho guerreiro, bravo lutador da vida, o Neguinho Tuíca, amigo de sempre, a Ceni, a Dona Neta... – são as que fizeram (e algumas continuam fazendo) os melhores bolinhos de batata que conheci.
O Paulo Sant’ana, numa crônica memorável publicada há uma meia dúzia de anos, escreveu em Zero Hora sobre uns bolinhos de batata famosos de um certo lugar em Porto Alegre. No outro dia, a sua caixa de e-mails estava entupida de recados, com os leitores mandando dicas de bolinho de batata de todo o Rio Grande, dando uma repercussão ao assunto que o próprio Sant’ana não esperava.
Entre os que escreveram para o Paulo estava o Rogério Brodbeck, de Pelotas, que proclamou a extraordinária qualidade dos bolinhos de batata feitos pela Dona Marly, no Bar do Nenê, ali na Andrade Neves com a Argolo, um dos redutos mais tradicionais da turma do aperitivo de Pelotas já fazem mais de duas décadas.
Lá no Nenê tem bolinho de bacalhau, tem croquete feito na hora, tem pastel de queijo, tem o sanduíche aberto e tem o “batatinha”, que é como ele chama o bolinho de batata da Dona Marly, entre uma infinidade de petiscos de dar água na boca.
Pois eu, mesmo sendo assíduo freqüentador e contumaz devorador dos salgadinhos do Bar do Nenê, deixo-me levar pela paixão que cada vez mais devoto às coisas da minha terra, para declarar – de forma oficial, solene e irretratável - que não existe nada no mundo igual ao bolinho de batata da Dona Neta, com a vantagem da gente poder comê-lo lá mesmo no Bar do Paulinho, e de pé ao lado do balcão, na companhia de amigos como o Bide e o Denílson, o que, convenhamos, não é para qualquer um.