sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

O “OUTRO”


No ano passado, mais ou menos por esta época, eu recebi um prêmio que muito me orgulhou, o “Troféu Oscar Falcão”, uma homenagem às pessoas que fizeram algo pelo esporte em Arroio Grande. A minha inclusão entre os indicados deu-se, segundo disseram, em razão da autoria do livro O “Clássico” – Uma história de paixão, publicado em 2011. Fiquei duplamente honrado: pelo reconhecimento da obra, mas também porque o troféu leva o nome do Oscar Falcão, o extraordinário goleiro do Esporte Clube Arroio Grande.
Eu nunca escondi de ninguém que o grande ídolo da minha mocidade, no futebol, foi ele, o “Ósca”, de quem muito se disse e se escreveu, aqui na Cidade e pelo Rio Grande afora. O professor Rui Carlos Ostermann, por exemplo, ao conhecer o Ósca numa ocasião em que esteve no Arroio Grande, resumiu para o jornal Zero Hora, no ano de 1982: “Chama-se Oscar, escrevo assim embora pronunciem o nome com acento grave no “O”. Já passa dos trinta e vai ficar como um mito encravado nas conversações intermináveis de Arroio Grande e adjacências”.
O Ósca sempre foi o meu ídolo, o mito, a lenda. Até porque, por ser torcedor Sacy, eu nunca aceitei comparações com outros jogadores, o meu herói era o Ósca e somente ele, para mim ele era absoluto, inigualável, incomparável. Os outros – os do “outro lado” – que escolhessem quem eles queriam idolatrar, ora bolas!
E que bom que eu sempre pensei assim, que bom que eu nunca quis dividir a minha idolatria.
Porque do “outro lado”, lá, do lado “deles”, também havia um craque, e – que provocação! – também goleiro, e – que diabos! – tão fabuloso, tão espetacular, tão maravilhoso quanto o meu ídolo, o herói que eu nunca quis colocar sob disputa com ninguém.
Do outro lado esteve, por anos e anos, vestindo a sagrada camiseta do Grêmio Esportivo Internacional (embora tivesse atuado também pelo E. C. Arroio Grande), o extraordinário goleiro Osvaldo Britto, um multicampeão amador e profissional que terminou a carreira consagrado como um dos maiores goleiros da região sul e do Estado.
No tempo em que o Osvaldo foi goleiro do Internacional eu jamais aceitei vê-lo exatamente como ele era – sóbrio, competente, irrepreensível na posição. Afinal, ele sempre se mostrou como uma “ameaça” ao meu ídolo, e o meu ídolo era o Ósca e – pronto! – não tinha espaço para mais ninguém.
Uma ocasião, em 1981, o torneio de Futebol de Sete do G. E. Internacional proporcionou a mim, como coadjuvante, jogar ao lado dele, o grande Osvaldo Britto, e conhecer um pouco mais do jogador, do craque, mas também do homem que durante anos eu conhecera apenas superficialmente. No torneio, em que jogamos juntos pelo time do Kbção (e fomos campeões!), eu tive a oportunidade de conviver com um cidadão do bem, um camarada maravilhoso, com quem aprendi lições sobre o futebol e sobre a vida.
Por tudo, eu guardo até hoje, 36 anos depois daquele campeonato, com o mais absoluto carinho, uma fotografia em que aparecemos juntos – o Osvaldo, eu, e todos aqueles que compuseram a imagem daquele time campeão. Ali surge imponente, não o meu grande ídolo – o Ósca –, mas um sujeito de camiseta negra, de luvas bem ajustadas, expressão serena, o extraordinário goleiro que foi Osvaldo Britto, o homem que fez com que durante a mocidade eu me recusasse a colocar a minha idolatria em disputa.
E eu tenho convicção de que agi corretamente, assim como tenho certeza de que o Ósca, esteja onde estiver, entende perfeitamente o significado de cada palavra deste texto. 
Porque as lendas não se comparam, nem com os grandiosos, nem com os fantásticos, nem com os espetaculares. Uma lenda a gente não divide nem com quem - como o gigante Osvaldo Britto - já virou lenda também!

quinta-feira, 12 de outubro de 2017

UMA PROFESSORA

O nome da minha primeira professora é Marlise, Marlise Esteves. Não sei se ela já carregava o “Silva” no nome quando iniciou como educadora na Escola Dionísio de Magalhães em meados dos anos 1960, mas isso não importa, pois o que interessa mesmo, ao menos neste texto, é o nome pelo qual eu sempre identifiquei a primeira professora que tive: Marlise, simplesmente.
Também não sei como a Marlise – neta do lendário estancieiro Otávio Esteves – chegou até a Escola Dr. Dionísio, um colégio da periferia do Arroio Grande naqueles tempos. Mas sei, porque isso é inesquecível, de como eu fui parar lá, em seguida aos meus seis anos de idade, nos idos de 1967.
O meu pai, o advogado e poeta Pedro Jayme, sempre criativo e inovador, decidiu que nós – a minha irmã Nazine e eu – é que deveríamos escolher a escola onde iríamos estudar. Então resolveu passar de colégio em colégio, até que nós, pequenos, ficamos encantados com o Dionísio, uma escolinha de madeira, recém-pintada, situada numa rua tranquila embora longínqua, pois que distante cerca de dez quarteirões da nossa casa.
A Escola fazia pouco que tinha sido inaugurada, e recebeu o nome em homenagem ao médico e ex-prefeito da cidade Dionísio de Magalhães, falecido em 1956. Nós não sabíamos da origem do nome, nem da história do médico, mas ficamos encantados com a imagem da escolinha, aconchegante e bonita, como, aliás, deveriam ser todas as escolas, especialmente aquelas que recebem crianças para educar.
Pois foi a escolha mais acertada e feliz que nós poderíamos fazer.
Ali, na então periferia do Arroio Grande, eu, um filho da classe média da cidade, pude conhecer gente simples, guris e gurias de vida modesta, mas com uma honestidade de princípios e retidão de caráter que somente aqueles que recebem educação exemplar conseguem assimilar.
Ali, numa parte remota do Arroio Grande, eu, que conheceria mais tarde a mesa farta das famílias tradicionais da cidade, pude valorizar a simplicidade de um prato de arroz com leite, a dignidade de um arroz com feijão, a generosidade de uma tigela de sopa. Ali, onde quase terminava o Arroio Grande, eu comecei a descobrir o inigualável valor das coisas comuns.
Pois foi também ali, na pequena escolinha, que eu conheci a importância de uma grande educadora, de uma pessoa correta, justa, preocupada apenas em transmitir valores e que me deixou lições para a vida inteira. Ali, na Escola Dionísio de Magalhães, eu pude ver tudo isso na Marlise, a minha primeira professora.
No próximo dia 15, Dia do Professor, nestes tempos difíceis para a classe dos docentes, eu, que tenho mãe, irmã, mulher e sogra professoras, gostaria de dirigir à Marlise – e em assim o fazendo a todos os educadores – o maior dos agradecimentos, pela boa influência que o primeiro professor pode ter na formação de um aluno e de um cidadão.
Porque dela aproveitei os ensinamentos que fizeram o que de mais generoso pode haver em mim; já os defeitos são produto unicamente dos desvios e dos descaminhos em que pela vida eu possa ter me extraviado. 
Tenho por ela, pela minha primeira professora, tão absoluta afeição e tão extraordinário apreço, que quando com ela cruzo mal levanto os olhos para cumprimentá-la, em sinal de respeito e em definitiva consideração a tudo o que representou para a minha formação, ao repassar princípios que permanecem inabaláveis dentro de mim até os dias atuais.
Por isso, à Marlise a minha gratidão, o meu carinho e o meu agradecimento: muito obrigado por tudo, minha querida e inesquecível primeira professora.
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(Fotografia: Alunos da Escola Dionísio de Magalhães, meados dos anos 1960. Publicação de Bianca Porto na página do Grupo Defensores do Patrimônio Histórico e Cultural de Arroio Grande-RS)

sexta-feira, 6 de outubro de 2017

O ARQUIVO VIVO DA DITADURA

Nestes tempos em que alguns cogitam a volta dos militares ao Poder (?), papel que está fora daquele que a Constituição Federal (Art. 142) reserva às Forças Armadas, parece interessante fazer uma referência ao personagem que melhor conheceu os meandros do último ciclo da ditadura no Brasil (1964–1985), ele que não era nenhum general, nem tampouco político, muito embora estivesse próximo a todos eles – dos militares, dos ministros, de deputados e de senadores – durante os 21 anos de governo de exceção no país.
Chama-se1 Heitor Aquino Ferreira, era capitão (depois major) do Exército e tinha 28 anos quando o golpe que derrubou João Goulart foi deflagrado. Desde então, tornou-se assistente do general Golbery do Couto e Silva – este a eminência parda dos governos militares no período. Já a partir de junho de 1964, Heitor começaria a escrever um diário, passando a relatar, com riqueza de detalhes, os bastidores das principais decisões da época.
Os arquivos de Heitor Ferreira, que se misturaram com os arquivos do general Golbery, formaram um acervo de 5 mil documentos, entre anotações, bilhetes ou simples rabiscos, que o capitão ia pacientemente juntando ao longo do período em que foi secretário, primeiro de Golbery (de 1964 a 1967), depois de Geisel (de 1972 a 1979), passando ainda pela Petrobrás e pelo Projeto Jari, nos governos Geisel e Figueiredo.
Heitor manteve, ainda, por mais de duas décadas, “um diário manuscrito que em 1985 somava dezessete cadernos escolares com cerca de meio milhão de palavras, suficiente para formar uma obra de 1500 páginas”. “O mais minucioso e surpreendente retrato do poder já feito em toda a história do Brasil”2, sendo que o seu autor ainda é um desconhecido da imensa maioria dos brasileiros.
O detalhe em tudo isso é que Heitor Aquino Ferreira, filho de Abelar Joaquim Ferreira e Lídia Aquino Ferreira, é gaúcho, nascido em 21 de dezembro de 19353 em Olimpo – Arroio Grande, RS, sendo que nunca se soube de nenhuma notícia dele por aqui.
Com trajetória militar iniciada no final dos anos 1950, (Heitor já era tenente em 1961, quando do episódio da Legalidade), o homem que formou o maior arquivo do governo militar em duas décadas parece não ter deixado marcas da sua infância e da sua juventude, restando acerca dele algumas interrogações.
Primeiro: sendo Heitor Ferreira nascido na Vila Olimpo, atual município de Pedro Osório, que até 1957 pertencia, como distrito, ao Arroio Grande, teria vivido a sua mocidade aqui ou próximo daqui? Quem, do Arroio Grande, chegou a conhecer pessoalmente Heitor?
Segundo: Por acaso alguma vez, o homem que possuía o “mais minucioso e surpreendente retrato do poder já feito da história do Brasil”, a grande testemunha de um quarto de século dos acontecimentos do País, foi procurado por autoridades da sua terra, isto é, do Arroio Grande, ou mesmo de Pedro Osório, para uma palestra, uma conferência, ou simplesmente para ilustrar com um pouco de conhecimento histórico as cabeças espremidas destes torrões?
1 - São escassas as informações atuais sobre Heitor Ferreira, que tornou-se tradutor de livros. O jornalista Ricardo Boechat (Revista ISTOÉ) publicou, no final de 2008, que “o ex-major Heitor de Aquino Ferreira está internado na UTI de uma clínica no Rio. Desde dezembro ele luta contra um distúrbio imunológico que ataca rins e pulmões, com risco de morte”. Já um artigo de Saul Leblon, publicado na Revista “Carta Maior”, em dezembro de 2013, dá a entender que o militar estaria morto. O jornalista André Petry, entretanto, em conversa pessoal com este autor em março de 2017, garantiu que Heitor Ferreira está vivo, tendo inclusive frequentado a redação da Revista Veja no ano de 2016.
2 - Elio Gaspari – A ditadura envergonhada, Companhia das Letras, 2002, pág. 15.
3 - Existem três informações convergentes sobre a idade de Heitor Ferreira: uma, que teria 28 anos em 31/03/1964 (Elio Gaspari – A ditadura encurralada, pág. 15), outra que estaria com 38 anos em março de 1974 (Elio Gaspari – A ditadura derrotada, pág. 412), e outra que contaria com 47 anos quando foi exonerado por Figueiredo, em 1983. A data de seu nascimento foi retirada do Blog Genealogia e História na Fronteira Sul do RS, post de 8 de agosto de 2014. 
Heitor Ferreira, com Golbery do Couto e Silva e Ernesto Geisel
Heitor Ferreira com Shigeaki Ueki e Mário Henrique Simonsen 

domingo, 17 de setembro de 2017

O GITA FICOU ENCANTADO!

(Para o conterrâneo e amigo João Garcia, em homenagem as suas palavras publicadas no jornal Correio do Sul, edição de 15.09.2017)

Arroio Grande, 9 de setembro de 2017. O Ginásio de Esportes Gita, o popular “Gitão”, estava lotado quando, por volta da meia-noite, as luzes se apagaram e um evento até então previsível ganhou ares superiores e transformou-se radicalmente num espetáculo poucas vezes visto na cidade.
De repente, o ruído das torcidas parou, o burburinho das arquibancadas cessou, e os acordes de uma canção ecoaram por todo o Ginásio Municipal.
No meio da quadra, o saxofone do Clodomar, o popular “Orelha”, surgiu leve, despacito, não aparentando ser manejado somente por ele, senão que parecia ter um pouco o auxílio das mãos sensíveis do Nenê Balhego, quem sabe a maior virtuose da música que esta terra conheceu.
Atrás dele, preparados para executar o Hino Riograndense, o Jelson Domingues e o Alexander Ferreira também não pareciam ser somente eles, pois traziam alguma coisa do Weymar ao bandoneon e do Galinho Perogildo ao violão, enquanto que o canto do Maicon Paiva reviveu Basílio Conceição, no faceiro vanerão em que se transformou o lindo Hino da Cidade.
Para completar, a Banda Militar, executando o Hino Nacional, relembrou a histórica Banda Farroupilha, e o Maestro Joãozinho ressurgiu moderno para fazer a plateia dançar um pedacim ao ritmo de você partiu meu coração.
Na quadra, na grande final de Futsal, dois times de rapazes, alguns até garotos, pareciam repetir os feitos dos velhos craques do passado do Arroio Grande.
De um lado, o goleiro Oscarzinho lembrava o seu pai, o lendário Ósca, enquanto o menino Todynho, pelo outro lado, parecia ninguém menos que o antológico Osvaldo Brito, o extraordinário arqueiro que rivalizou com o Oscar os maiores duelos que a cidade já viu.
Os demais – Lorenzo, Marcelo Vidal e Glikson; Bido, Marquinho e Matheus – não jogaram somente por eles, tinham alguma coisa indecifrável dos grandes craques do Arroio Grande de outros tempos; quem sabe a técnica de um Wilson do Ari, a elegância de um Adel, de um Zé Marfisa; quem sabe a tenacidade de um Chirú, a entrega de um Ademir, de um Caminhão, mas sempre, sempre, a vontade de vencer de um Ayres, de um Betinho, de um Marrequinho e de tantos outros entre os que ainda estão e os que já não estão mais entre nós.
Os técnicos Batata e João Victor foram estrategistas e motivadores, como Arizinho e Charuto no passado, e os gigantes Henri e Teteu, cada qual pelo seu lado, foram grandiosos como o próprio Gita e como o mito Ari Lúcio. E olha que ainda faltou El Mago Mincho...
Por tudo, o resultado do título do Manda Brasa sobre os Meninos da Vila só poderia vir mesmo como veio, um 5 X 4, faltando apenas 20 segundos para terminar a prorrogação.
Satisfeitos, o Prefeito Henrique e a Secretária Ivana comemoravam o resultado de um das melhores realizações esportivas da Cidade, enquanto a atuação do Baltazar e dos demais assessores lembrou a dos grandes organizadores dos eventos de futebol do Arroio Grande.
Em algum lugar de um outro plano, Bonifácio Ubirajara da Porciúncula Nuñez, o velho Gita, deve ter sorrido encantado, pois o seu nome e a sua história de desportista estavam mais uma vez sendo honrados.
E quando já era madrugada do outro dia, o público agradeceu e pode enfim se despedir daquela inesquecível noite de 9 de setembro de 2017, o dia em que uma simples partida de futebol foi muito mais que um jogo de futebol, e fez a Cidade dormir feliz, satisfeita e orgulhosa da sua própria grandeza.
(Publicado originalmente no jornal "A Evolução", edição de 15.09.2017, a pedido do jornalista Jorge Américo Borges)

sexta-feira, 8 de setembro de 2017

PROVOCAÇÃO (III)

O PADEIRO ASSASSINO
(ou O FILHO "ILUSTRE" QUE NINGUÉM QUIS)
Há exatos cento e dois anos, no dia 8 de setembro de 1915, uma quarta-feira, por volta das 16h30min, o senador gaúcho José Gomes Pinheiro Machado, o homem mais poderoso da história da República, que havia recém ingressado no saguão principal do Hotel dos Estrangeiros, no Centro do Rio de Janeiro, foi apunhalado pelas costas por um padeiro desempregado, um homem do povo, um “Zé ninguém”, vindo a falecer logo em seguida, em razão do profundo sangramento decorrente do ferimento que sofrera na região do abdomen.
Sobre a vida e a morte de Pinheiro Machado – advogado, general e senador – muito já se escreveu, sendo desnecessário reproduzir aqui a sua trajetória, pois trata-se, talvez, do mais poderoso político da história do Brasil, especialmente no período republicano.
Mas, e o seu assassino? O homem que matou o Senador, o padeiro desempregado, apontado como desertor do Exército e desequilibrado mental; o que se sabe dele até hoje, decorridos 102 anos do assassinato de Pinheiro Machado?
Francisco Manço de Paiva, ou Francisco Manço Paiva Coimbra, contava 32 ou 331 anos por ocasião do assassinato e teria morrido próximo aos 80 anos de idade, após cumprir 20 dos 30 anos de prisão a que fora condenado pela morte do Senador, até ser indultado pelo Presidente Getúlio Vargas em 1935. Em 1957, vivia como aposentado do Instituto Brasileiro do Café, aos 73 anos de idade,2 tendo falecido no final dos anos 1960.
Mas o detalhe que cerca a figura do assassino confesso de Pinheiro Machado, é que, segundo contou o seu pai – Francisco de Paiva Coimbra – por ocasião do julgamento3 do filho, este teria nascido em Arroio Grande, RS, em 1884, em contradição ao que dissera o próprio Manço de Paiva quando do exame que verificou a sua sanidade mental, ocorrido dois meses antes da realização da sessão do júri, sendo que o réu garantiu ser natural da vizinha cidade de Jaguarão, onde nascera “em 1889 ou 1890” (?).
Ao que se sabe, Arroio Grande e Jaguarão nunca “brigaram” pela paternidade de Paiva Coimbra, afinal, como bem disse o escritor pelotense Mário Osório Magalhães em artigo publicado no Jornal Diário Popular, ainda que valesse a pena desfazer a dúvida (...) “tenho certeza que faria murchar um pouco o bairrismo sadio que se vê reflorescer a cada dia, de forma constante e crescente, no coração dos prezados habitantes de Arroio Grande e Jaguarão.4
Mas que fica a curiosidade fica, cabendo também uma provocação aos investigadores da história oficial de ambas as cidades5 para responder a pergunta pela qual até hoje ninguém demonstrou muito interesse: afinal, Francisco Manço de Paiva Coimbra, o “padeiro assassino”, é “patrimônio” de quem? Da Cidade Simpatia (Arroio Grande) ou da Cidade Heróica (Jaguarão), ou, quem sabe, de nenhuma delas6?
Com a palavra, os especialistas: alguém se habilita a proclamar a paternidade desse filho “ilustre”?
1 - Revista “Aventuras na História”, janeiro de 2016.
2 - Jornal “A Noite” (RJ), edição de 9 de julho de 1957.
3 - Notas do Júri. O julgamento rendeu um filme, concluído em 1917, com o título de O julgamento de Manso Paiva: o assassino do General Pinheiro Machado. O documentário foi exibido no Cine Central, em São Paulo, em 27/07/1917. Nos catálogos de cinema aparece hoje como filme “desaparecido”.
4 - Artigo publicado no Jornal Diário Popular, Pelotas, RS, edição de 19.06.2005.
5 - Em Arroio Grande, o Grupo Defensores do Patrimônio Histórico e Cultural já se ocupou parcialmente do tema, quando da publicação de uma fotografia sobre a missa em homenagem à morte de Pinheiro Machado na Cidade.
6 - Existe ainda a notícia de que Manço Paiva seria natural de Cacimbinhas, antigo nome de Pinheiro Machado, e que o pai do assassino teria criado a versão de que o filho teria nascido no Arroio Grande para a família poder permanecer morando naquela cidade (Pinheiro Machado). 
Imagens: 1ª) Manço Paiva e Pinheiro Machado; 
2ª) O assassino e o local do crime: o Hotel dos Estrangeiros 
(Revista Aventuras na História)
 3ª) A assinatura de Manço de Paiva 
 4ª) A recepção do Hotel, onde Manço Paiva aguardou para apunhalar Pinheiro Machado 
(Fotografia: Rio Then)
5ª) A notícia do assassinato - Revista da Semana, Ed. 31 de setembro de 1915
6ª) A entrevista do assassino - 42 anos depois - Jornal A Noite, RJ, julho de 1957
ADENDO*:
"(…) Sempre guardado á vista, o assassino Francisco Manso de Paiva Coimbra, passou a noite calmo, dormindo algumas horas, recusando, entretanto, qualquer alimentação, a não ser café. Tem o aspecto abatido, pronunciadas olheiras e a barba mais crescida. Veste ainda o mesmo terno escuro com que foi preso e se deixa photographar sem a menor reluctancia.
O maior temor que o criminoso manifesta é o que lhe poderá acontecer na Casa de Detenção, para onde não deseja ir. Sabe que o director desse presidio era amigo particular do general Pinheiro Machado, e se arreceia de ser maltratado ali. Isso mesmo já o criminoso hontem expandia ao dr. chefe de pollicia, quando interrogado.
Na delegacia do 6o districto, quando, ás 11 horas da manhã de hoje estava sendo identificado, um dos nossos companheiros logrou falar ao criminoso.
Apezar de se mostrar calmo, Francisco Manso de Paiva Coimbra ao assignar as fichas tinha a mão tremula.
Interrogando-o, disse-nos o assassino que as suas declarações são as de seu depoimento, já publicado em todos os jornaes em que affirmou estar satisfeito em haver cumprido um voto de que ha muito fizera.
Disse-nos ter pae e mãe vivos, no Rio Grande do Sul, de onde é filho; seu pae é Francisco de Paiva Coimbra, portuguez e padeiro, e sua mãe D. Maria de Jesus, natural do Rio Grande. Seu parente é apenas sua irmã Conceição, tambem no Rio Grande, não tendo aqui no Rio senão ligeiros conhecimentos.
Perguntando-lhe si havia já sido preso alguma vez, mesmo com o nome de João Dias Regis, respondeu-nos que nunca fora preso e se trocou de nome foi por ter desertado do Exercito.
Dentre outras declarações prestadas, quer á policia, quer á imprensa, o assassino disse não ser habito seu frequentar "meetings" nem reuniões politicas, apenas tendo ido ao ultimo realisado nesta capital, que diziam ser contra o general Pinheiro. Fôra este o único "meeting" a que compareceu. (...)"
(Jornal “A Notícia”, Rio de Janeiro, Ed. de 9 de setembro de 1915).

*O autor optou por preservar o português da época.

domingo, 3 de setembro de 2017

PROVOCAÇÃO (II)


A “COMPRA DE SUBSTITUTOS”
Muito se diz que a Guerra do Paraguai (1864–1870) foi “uma guerra de pobres e de escravos”, já que do lado brasileiro1 o recrutamento compulsório de despossuídos e de ex-cativos libertos foi bastante significativo em comparação ao número de homens brancos livremente alistados.
O que ainda se comenta com um certo constrangimento, sempre do lado brasileiro, é que muitos dos escravos foram encaminhados para a guerra de uma maneira bastante embaraçosa à classe branca dominante, pois vigorava na época a chamada “compra de substitutos”, isto é, a possibilidade de se comprar escravos e de enviá-los para lutar no lugar dos seus proprietários, ou em substituição aos filhos destes.
Funcionava mais ou menos assim: o comando do exército imperial entrava em contato com os chefes políticos regionais, estes dirigiam-se às autoridades locais, levantavam dados e informações, e recrutavam jovens para lutar na guerra. Os pais dos jovens que possuíam escravos tinham direito de trocar os seus filhos alistados pelos cativos e os que não tinham escravos podiam comprá-los. Proposta a troca, a mesma era realizada, e os escravos iam para a guerra lutar e morrer no lugar dos brancos recrutados, ou, mais remotamente, para retornarem livres, se e quando retornassem.
Pois consta que no Arroio Grande “entre os dias 19 de agosto e 1º de setembro de 1865, nove (9) escravos ganharam a liberdade, todos eles para servirem como substitutos dos seus senhores ou dos filhos deles no Exército, durante a Guerra do Paraguai. A história registra apenas os seus prenomes, Protázio, Aleixo, Antônio, Jacinto, Marcelino (o mais velho, com 36 anos), José, Vicente, Luciano e Cipriano; nada mais sabemos deles, se sobreviveram, ou se morreram lutando por uma pátria ingrata, pois deles a história oficial não se preocupa2.
Pois hoje, 152 anos depois, mesmo com todos os recursos da internet e com as inúmeras fontes e instrumentos de pesquisa disponíveis, ainda nada se sabe do destino desses substitutos, sendo que os substituídos acabaram em muitos casos virando nome de rua, denominação de praça, tornando-se doutores, proprietários de terras, ricos patrões, ampliando com isso o predomínio das classes brancas dominantes através dos séculos.
Sem pretender entrar na discussão rasa acerca da postura de quem, podendo, não mandaria outro para lutar (e morrer) na guerra no lugar de um filho seu ou de si próprio, verdade é que, historicamente, a questão permanece carecendo de um maior aprofundamento, e, no caso do Arroio Grande, impõe ao menos duas indagações: 1ª) o que realmente aconteceu3 com os escravos do Arroio Grande enviados para lutar na Guerra do Paraguai como substitutos dos filhos dos seus senhores? 2º) quem foram exatamente os substituídos?
Com a palavra, os especialistas.
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1 - Do lado paraguaio sequer é possível fazer qualquer estimativa, já que entre 1866 e 1867 toda a população masculina entre dez (sic) e 60 anos teria sido recrutada (cfe. a historiadora Milda Rivarola – La polemica francesa sobre la guerra grande, Editorial Histórica, 1988).
2 - O Dr. Sérgio Canhada já se ocupou do tema em excelente artigo intitulado Os sem genealogia, publicado em “um site do Uruguay” e no “Blog do Canhada”, neste último em data de 27.10.2013. As declarações do Sérgio acima transcritas foram prestadas originalmente para o Jornal “A Evolução”, edição de 23.03.2007, em matéria produzida pelo autor deste texto.
3 - Flávio Basílio Silveira, o “Camões”, afirma que o seu trisavô, Angelino Pereira das Neves, enviou para a Guerra do Paraguai, para lutar em seu lugar, o escravo Manoel Velho, que teria retornado, finda a guerra, trazendo uma lança de combate que permaneceu na propriedade dos seus “senhores” durante décadas.   
Na imagem do alto, um comerciante compra e liberta um escravo enviando-o para a Guerra do Paraguai. Tal gesto era visto então como patriótico, pois segundo a lógica vigente contribuía para a diminuição do número de escravos e o aumento dos soldados.
(Revista Semana Ilustrada, 11 de novembro de 1866).
Abaixo, algumas das diversas etnias africanas escravizadas e trazidas para o Brasil no período da colonização - Congo, Benguela, Mina, Rebollo, Cabinda e Quinoa, todas citadas na canção Zumbi, de Jorge Benjor (1974), referência obrigatória sobre o tema nas aulas de história do período.
Imagens captadas pelo autor deste texto junto aos corredores de um hotel do Rio de Janeiro.   

sexta-feira, 18 de agosto de 2017

PROVOCAÇÃO (I)


(Para o Arnóbio, para o Sérgio Canhada, para a Carla Hernandez e para os demais membros do Grupo “Defensores do Patrimônio Histórico e Cultural do Arroio Grande”)

Sempre se disse, ou sempre se ouviu dizer, que as primeiras fotografias conhecidas do Arroio Grande, um conjunto de pouco mais de meia dúzia de imagens – duas da Igreja Matriz; duas da rua principal no sentido Sul–Norte, uma delas mostrando homens em frente a um armazém no encontro entre as atuais Rua Dr. Monteiro e Rua Dionísio de Magalhães; duas da atual Rua Dr Monteiro no sentido Norte-Sul, uma delas mostrando o imponente prédio que ficaria conhecido como a “Pharmácia Maciel”; e, finalmente, duas da atual Av. Visconde de Mauá no sentido oeste-leste, mostrando o prédio comercial que se tornaria a “Casa São Paulo”, no esquina com a atual Rua Dr. Monteiro –, pois sempre se falou que essas fotografias são datadas do final do Século XIX ou do início do Século XX, mas sem qualquer precisão acerca da data das imagens.
Muito se especulou também sobre a autoria de tais fotografias, algo incomum por aqui há 120 anos, nesta quase esquecida zona de fronteira onde estava se constituindo o Arroio Grande.
Por outro lado, também sempre se ouviu dizer que essas primeiras imagens, dos prédios então "modernos" do Arroio Grande, foram produzidas por um fotógrafo profissional que, em período impreciso, teria se aventurado a fotografar algumas cidades da região, entre elas Jaguarão, Herval e Arroio Grande, com a finalidade de expor as imagens desses municípios.
Pois agora, um trabalho do pesquisador Adão Monquelat, intitulado “O fotógrafo Augusto Amorety em Pelotas”1, lança algumas luzes sobre a obra do artista fotográfico Amorety, que manteve um renomado estúdio em Pelotas por mais de 25 anos, entre 1876 e 1902, quando o atelier teve as portas fechadas, ao que se sabe em definitivo.
O trabalho de Monquelat não faz qualquer referência a passagem de Amorety pelo Arroio Grande, se é que ela realmente ocorreu, mas deixa uma pista ao dizer que o “conceituado profissional” teve, em 4 de julho de 1901, a sua galeria “aumentada com a bela coleção de fotografias com que aquele fotógrafo concorrera à Exposição Estadual”.
Ora, sabendo-se que os prédios que aparecem nas primeiras fotografias conhecidas do Arroio Grande – correspondentes à “Casa São Paulo”, à “Pharmácia Maciel” e ao “Café Central”, entre outros – foram erguidos próximo a 18802, e que o fotógrafo Amorety percorreu parte do Estado antes de fechar as portas do seu estúdio em 1902, tendo antes concorrido em uma “Exposição de Fotografias” a nível estadual, provavelmente em 1901, é possível supor-se que esse "primeiro retrato" da Cidade tenha sido captado por aquele profissional (se é que foi realmente ele o autor das imagens3) exatamente na virada do Século XIX para o Século XX, ou seja, entre 1890 e 1900.
Isto pode não ser exato, mas, como se disse, é uma luz para os pesquisadores e historiadores da Cidade que ficam, desde agora, provocados a responder a essas duas questões: 1º) quem foi o autor do conjunto das primeiras imagens conhecidas do Arroio Grande? 2º) quando (em que ano) elas foram exatamente produzidas?
Com a palavra, os especialistas.

1 - Publicado no jornal Diário da Manhã, de Pelotas, edições conjuntas de 23/24 de janeiro e 30/31 de janeiro de 2016.
2 - Curiosamente, a edificação conhecida como “Sobrado dos Lisboa”, um dos símbolos da Cidade, cuja construção data de 1864, não aparece (?) nesse “primeiro conjunto” de fotografias dos prédios do Arroio Grande.
3 - Sérgio Canhada tem outra hipótese: a de que seria Afonso Carlos Amorety, irmão de Augusto, o autor das imagens. Tal suposição vem do fato de que Afonso, também fotógrafo, contraiu matrimônio com “uma Souza Gusmão” (descendente do), em Arroio Grande, por volta de 1880, tendo se dedicado, então, a fotografar os principais prédios da Cidade.
* Créditos das fotografias: Acervo do autor, Profª Flávia Corrêa, Dr. Sérgio Canhada, não necessariamente na ordem em que serão expostas.