domingo, 3 de setembro de 2017

PROVOCAÇÃO (II)


A “COMPRA DE SUBSTITUTOS”
Muito se diz que a Guerra do Paraguai (1864–1870) foi “uma guerra de pobres e de escravos”, já que do lado brasileiro1 o recrutamento compulsório de despossuídos e de ex-cativos libertos foi bastante significativo em comparação ao número de homens brancos livremente alistados.
O que ainda se comenta com um certo constrangimento, sempre do lado brasileiro, é que muitos dos escravos foram encaminhados para a guerra de uma maneira bastante embaraçosa à classe branca dominante, pois vigorava na época a chamada “compra de substitutos”, isto é, a possibilidade de se comprar escravos e de enviá-los para lutar no lugar dos seus proprietários, ou em substituição aos filhos destes.
Funcionava mais ou menos assim: o comando do exército imperial entrava em contato com os chefes políticos regionais, estes dirigiam-se às autoridades locais, levantavam dados e informações, e recrutavam jovens para lutar na guerra. Os pais dos jovens que possuíam escravos tinham direito de trocar os seus filhos alistados pelos cativos e os que não tinham escravos podiam comprá-los. Proposta a troca, a mesma era realizada, e os escravos iam para a guerra lutar e morrer no lugar dos brancos recrutados, ou, mais remotamente, para retornarem livres, se e quando retornassem.
Pois consta que no Arroio Grande “entre os dias 19 de agosto e 1º de setembro de 1865, nove (9) escravos ganharam a liberdade, todos eles para servirem como substitutos dos seus senhores ou dos filhos deles no Exército, durante a Guerra do Paraguai. A história registra apenas os seus prenomes, Protázio, Aleixo, Antônio, Jacinto, Marcelino (o mais velho, com 36 anos), José, Vicente, Luciano e Cipriano; nada mais sabemos deles, se sobreviveram, ou se morreram lutando por uma pátria ingrata, pois deles a história oficial não se preocupa2.
Pois hoje, 152 anos depois, mesmo com todos os recursos da internet e com as inúmeras fontes e instrumentos de pesquisa disponíveis, ainda nada se sabe do destino desses substitutos, sendo que os substituídos acabaram em muitos casos virando nome de rua, denominação de praça, tornando-se doutores, proprietários de terras, ricos patrões, ampliando com isso o predomínio das classes brancas dominantes através dos séculos.
Sem pretender entrar na discussão rasa acerca da postura de quem, podendo, não mandaria outro para lutar (e morrer) na guerra no lugar de um filho seu ou de si próprio, verdade é que, historicamente, a questão permanece carecendo de um maior aprofundamento, e, no caso do Arroio Grande, impõe ao menos duas indagações: 1ª) o que realmente aconteceu3 com os escravos do Arroio Grande enviados para lutar na Guerra do Paraguai como substitutos dos filhos dos seus senhores? 2º) quem foram exatamente os substituídos?
Com a palavra, os especialistas.
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1 - Do lado paraguaio sequer é possível fazer qualquer estimativa, já que entre 1866 e 1867 toda a população masculina entre dez (sic) e 60 anos teria sido recrutada (cfe. a historiadora Milda Rivarola – La polemica francesa sobre la guerra grande, Editorial Histórica, 1988).
2 - O Dr. Sérgio Canhada já se ocupou do tema em excelente artigo intitulado Os sem genealogia, publicado em “um site do Uruguay” e no “Blog do Canhada”, neste último em data de 27.10.2013. As declarações do Sérgio acima transcritas foram prestadas originalmente para o Jornal “A Evolução”, edição de 23.03.2007, em matéria produzida pelo autor deste texto.
3 - Flávio Basílio Silveira, o “Camões”, afirma que o seu trisavô, Angelino Pereira das Neves, enviou para a Guerra do Paraguai, para lutar em seu lugar, o escravo Manoel Velho, que teria retornado, finda a guerra, trazendo uma lança de combate que permaneceu na propriedade dos seus “senhores” durante décadas.   
Na imagem do alto, um comerciante compra e liberta um escravo enviando-o para a Guerra do Paraguai. Tal gesto era visto então como patriótico, pois segundo a lógica vigente contribuía para a diminuição do número de escravos e o aumento dos soldados.
(Revista Semana Ilustrada, 11 de novembro de 1866).
Abaixo, algumas das diversas etnias africanas escravizadas e trazidas para o Brasil no período da colonização - Congo, Benguela, Mina, Rebollo, Cabinda e Quinoa, todas citadas na canção Zumbi, de Jorge Benjor (1974), referência obrigatória sobre o tema nas aulas de história do período.
Imagens captadas pelo autor deste texto junto aos corredores de um hotel do Rio de Janeiro.   

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