quinta-feira, 12 de outubro de 2017

UMA PROFESSORA

O nome da minha primeira professora é Marlise, Marlise Esteves. Não sei se ela já carregava o “Silva” no nome quando iniciou como educadora na Escola Dionísio de Magalhães em meados dos anos 1960, mas isso não importa, pois o que interessa mesmo, ao menos neste texto, é o nome pelo qual eu sempre identifiquei a primeira professora que tive: Marlise, simplesmente.
Também não sei como a Marlise – neta do lendário estancieiro Otávio Esteves – chegou até a Escola Dr. Dionísio, um colégio da periferia do Arroio Grande naqueles tempos. Mas sei, porque isso é inesquecível, de como eu fui parar lá, em seguida aos meus seis anos de idade, nos idos de 1967.
O meu pai, o advogado e poeta Pedro Jayme, sempre criativo e inovador, decidiu que nós – a minha irmã Nazine e eu – é que deveríamos escolher a escola onde iríamos estudar. Então resolveu passar de colégio em colégio, até que nós, pequenos, ficamos encantados com o Dionísio, uma escolinha de madeira, recém-pintada, situada numa rua tranquila embora longínqua, pois que distante cerca de dez quarteirões da nossa casa.
A Escola fazia pouco que tinha sido inaugurada, e recebeu o nome em homenagem ao médico e ex-prefeito da cidade Dionísio de Magalhães, falecido em 1956. Nós não sabíamos da origem do nome, nem da história do médico, mas ficamos encantados com a imagem da escolinha, aconchegante e bonita, como, aliás, deveriam ser todas as escolas, especialmente aquelas que recebem crianças para educar.
Pois foi a escolha mais acertada e feliz que nós poderíamos fazer.
Ali, na então periferia do Arroio Grande, eu, um filho da classe média da cidade, pude conhecer gente simples, guris e gurias de vida modesta, mas com uma honestidade de princípios e retidão de caráter que somente aqueles que recebem educação exemplar conseguem assimilar.
Ali, numa parte remota do Arroio Grande, eu, que conheceria mais tarde a mesa farta das famílias tradicionais da cidade, pude valorizar a simplicidade de um prato de arroz com leite, a dignidade de um arroz com feijão, a generosidade de uma tigela de sopa. Ali, onde quase terminava o Arroio Grande, eu comecei a descobrir o inigualável valor das coisas comuns.
Pois foi também ali, na pequena escolinha, que eu conheci a importância de uma grande educadora, de uma pessoa correta, justa, preocupada apenas em transmitir valores e que me deixou lições para a vida inteira. Ali, na Escola Dionísio de Magalhães, eu pude ver tudo isso na Marlise, a minha primeira professora.
No próximo dia 15, Dia do Professor, nestes tempos difíceis para a classe dos docentes, eu, que tenho mãe, irmã, mulher e sogra professoras, gostaria de dirigir à Marlise – e em assim o fazendo a todos os educadores – o maior dos agradecimentos, pela boa influência que o primeiro professor pode ter na formação de um aluno e de um cidadão.
Porque dela aproveitei os ensinamentos que fizeram o que de mais generoso pode haver em mim; já os defeitos são produto unicamente dos desvios e dos descaminhos em que pela vida eu possa ter me extraviado. 
Tenho por ela, pela minha primeira professora, tão absoluta afeição e tão extraordinário apreço, que quando com ela cruzo mal levanto os olhos para cumprimentá-la, em sinal de respeito e em definitiva consideração a tudo o que representou para a minha formação, ao repassar princípios que permanecem inabaláveis dentro de mim até os dias atuais.
Por isso, à Marlise a minha gratidão, o meu carinho e o meu agradecimento: muito obrigado por tudo, minha querida e inesquecível primeira professora.
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(Fotografia: Alunos da Escola Dionísio de Magalhães, meados dos anos 1960. Publicação de Bianca Porto na página do Grupo Defensores do Patrimônio Histórico e Cultural de Arroio Grande-RS)

sexta-feira, 6 de outubro de 2017

O ARQUIVO VIVO DA DITADURA

Nestes tempos em que alguns cogitam a volta dos militares ao Poder (?), papel que está fora daquele que a Constituição Federal (Art. 142) reserva às Forças Armadas, parece interessante fazer uma referência ao personagem que melhor conheceu os meandros do último ciclo da ditadura no Brasil (1964–1985), ele que não era nenhum general, nem tampouco político, muito embora estivesse próximo a todos eles – dos militares, dos ministros, de deputados e de senadores – durante os 21 anos de governo de exceção no país.
Chama-se1 Heitor Aquino Ferreira, era capitão (depois major) do Exército e tinha 28 anos quando o golpe que derrubou João Goulart foi deflagrado. Desde então, tornou-se assistente do general Golbery do Couto e Silva – este a eminência parda dos governos militares no período. Já a partir de junho de 1964, Heitor começaria a escrever um diário, passando a relatar, com riqueza de detalhes, os bastidores das principais decisões da época.
Os arquivos de Heitor Ferreira, que se misturaram com os arquivos do general Golbery, formaram um acervo de 5 mil documentos, entre anotações, bilhetes ou simples rabiscos, que o capitão ia pacientemente juntando ao longo do período em que foi secretário, primeiro de Golbery (de 1964 a 1967), depois de Geisel (de 1972 a 1979), passando ainda pela Petrobrás e pelo Projeto Jari, nos governos Geisel e Figueiredo.
Heitor manteve, ainda, por mais de duas décadas, “um diário manuscrito que em 1985 somava dezessete cadernos escolares com cerca de meio milhão de palavras, suficiente para formar uma obra de 1500 páginas”. “O mais minucioso e surpreendente retrato do poder já feito em toda a história do Brasil”2, sendo que o seu autor ainda é um desconhecido da imensa maioria dos brasileiros.
O detalhe em tudo isso é que Heitor Aquino Ferreira, filho de Abelar Joaquim Ferreira e Lídia Aquino Ferreira, é gaúcho, nascido em 21 de dezembro de 19353 em Olimpo – Arroio Grande, RS, sendo que nunca se soube de nenhuma notícia dele por aqui.
Com trajetória militar iniciada no final dos anos 1950, (Heitor já era tenente em 1961, quando do episódio da Legalidade), o homem que formou o maior arquivo do governo militar em duas décadas parece não ter deixado marcas da sua infância e da sua juventude, restando acerca dele algumas interrogações.
Primeiro: sendo Heitor Ferreira nascido na Vila Olimpo, atual município de Pedro Osório, que até 1957 pertencia, como distrito, ao Arroio Grande, teria vivido a sua mocidade aqui ou próximo daqui? Quem, do Arroio Grande, chegou a conhecer pessoalmente Heitor?
Segundo: Por acaso alguma vez, o homem que possuía o “mais minucioso e surpreendente retrato do poder já feito da história do Brasil”, a grande testemunha de um quarto de século dos acontecimentos do País, foi procurado por autoridades da sua terra, isto é, do Arroio Grande, ou mesmo de Pedro Osório, para uma palestra, uma conferência, ou simplesmente para ilustrar com um pouco de conhecimento histórico as cabeças espremidas destes torrões?
1 - São escassas as informações atuais sobre Heitor Ferreira, que tornou-se tradutor de livros. O jornalista Ricardo Boechat (Revista ISTOÉ) publicou, no final de 2008, que “o ex-major Heitor de Aquino Ferreira está internado na UTI de uma clínica no Rio. Desde dezembro ele luta contra um distúrbio imunológico que ataca rins e pulmões, com risco de morte”. Já um artigo de Saul Leblon, publicado na Revista “Carta Maior”, em dezembro de 2013, dá a entender que o militar estaria morto. O jornalista André Petry, entretanto, em conversa pessoal com este autor em março de 2017, garantiu que Heitor Ferreira está vivo, tendo inclusive frequentado a redação da Revista Veja no ano de 2016.
2 - Elio Gaspari – A ditadura envergonhada, Companhia das Letras, 2002, pág. 15.
3 - Existem três informações convergentes sobre a idade de Heitor Ferreira: uma, que teria 28 anos em 31/03/1964 (Elio Gaspari – A ditadura encurralada, pág. 15), outra que estaria com 38 anos em março de 1974 (Elio Gaspari – A ditadura derrotada, pág. 412), e outra que contaria com 47 anos quando foi exonerado por Figueiredo, em 1983. A data de seu nascimento foi retirada do Blog Genealogia e História na Fronteira Sul do RS, post de 8 de agosto de 2014. 
Heitor Ferreira, com Golbery do Couto e Silva e Ernesto Geisel
Heitor Ferreira com Shigeaki Ueki e Mário Henrique Simonsen