terça-feira, 5 de maio de 2020

ESCOLHA (UM CONTO CURTO)


O revólver, não – havia decidido – não teria coragem de usar. Ainda mais um trinta e oito… Não, definitivamente o 38 assustava. Faca também não seria possível, ele não saberia manejar. Em outras alternativas vinha pensando há tempos: enforcamento, inalação de gás, uma queda das alturas… Nenhuma servia. Quem sabe, entrar caminhando no mar, como fez Alfonsina, a poetisa suiço-argentina? – “Te vas Alfonsina con tu soledad/Que poemas nuevos fuíste a buscar…”. Seria romântico, não deixava de reconhecer. Mas o mar ficava longe, e ele, agora, precisava ser prático, objetivo, cirúrgico. Tinha que resolver rápido aquela situação. Não poderia errar, sabia. Foi então que surgiu a ideia. Sessenta e cinco anos de idade, diabético, hipertenso, sedentário, obeso... Uma aposentadoria mixuruca, um único casamento, a vida toda. Sem filhos. A relação fud... (Nunca dizia “nome feio”, no máximo as iniciais do palavrão). A mulher vivia ainda no mundo da fantasia. Compras e mais compras. Roupas, perfumes, jóias… Carnês e dívidas às pilhas. O cartão estourado, o orçamento estourado, o casamento estourado, ele estourado… Foi então que surgiu a ideia. O Covid-19 havia sido descoberto, no Brasil, em fevereiro. Passaram-se três meses e a pandemia se esparramou. E ele ali, esperando o quê? Sempre fora um sujeito otimista, regrado, patriota. Acreditara na Nova República, no Plano Collor, na infinita bondade dos Estados Unidos e na vitória da Seleção Brasileira contra a Alemanha. Ainda mantinha certa simpatia pelo ex-juiz Sérgio Moro. Jamais imaginou que a Regina Duarte, a namoradinha do Brasil, pudesse soltar puns. Como muitos brasileiros, se desencantou com o PT, como quem se desilude com um produto que promete tirar a mancha da camisa e não tira. E ainda faz a gente ter que virar a gola. Estava assim, um desapontamento só. Agora, havia chegado no limite e a decisão fora tomada. Iria para as ruas. De cara limpa, sem máscara e sem luvas. Buscar aglomeração, contato, movimento. O final era fácil prever. Sessenta e cinco anos de idade, diabético, hipertenso, sedentário, obeso… Pegou o dinheiro para o táxi e se encaminhou para a saída. Foi então que escutou, na sala da casa, no momento em que passava na frente da televisão, escutou, logo após o relato de que havia muitas pessoas morrendo: “E daí? … Quer que eu faça o quê?” – foi o que ele ouviu. Então, parou, por um instante. Olhou para a porta da saída, três metros adiante, olhou para a embalagem de plástico, transparente, atrás dele, a poucos centímetros de distância. Pensou nas notícias que ouvira do país, ainda pela manhã: mais de cem mil infectados, quase oito mil mortos, cidades isoladas… Lembrou dos contêineres para cadáveres, das covas coletivas, do pânico… Chegou a escutar a voz do Aldyr Blanc cantando: “Tá lá o corpo estendido no chão… Em vez de reza uma praga de alguém e um silêncio servindo de amém...”. Então deu meia volta e se achegou à poltrona onde, há quarenta anos, se acomodava para ver o Jornal Nacional. Pegou o álcool gel e esfregou com firmeza por entre os dedos. Sentou. Retirou os sapatos, espichou bem as pernas e exclamou, entredentes:
– “E daí?" E daí é a pqp!

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