sábado, 1 de outubro de 2011

PRESENÇA DE ESPÍRITO



Na crônica da semana passada, fiz referência ao AGDEPRÊ, um twitter que se utiliza de frases irônicas – às vezes caprichadas, às vezes nem tanto – para protestar contra o cotidiano da cidade. Algumas pessoas não gostam, pois acham que a página deprecia Arroio Grande. Isso é uma grande bobagem, o mundo precisa de maior irreverência exatamente para combater a mediocridade.
A presença de espírito é tudo, ela serve, inclusive, para chamar a atenção de situações que necessitam ser alteradas.
É célebre a ocasião em que Érico Veríssimo, de passagem pelos Estados Unidos ainda fortemente racista dos anos 50, preenchendo a ficha de ingresso em um hotel, ao perceber que após os espaços de colocação de nome, endereço, sexo, havia ainda o pedido de declaração de “raça” do hóspede, não titubeou: – Humana! – declarou, espichando a mão para receber as chaves do recepcionista, que ficou perplexo ante o inusitado da resposta do escritor gaúcho.
São conhecidas as tiradas de Millôr Fernandes, que se especializou na estilo hai-kai (poemetos de três versos, como: “Viva o Brasil/ onde o ano inteiro/é primeiro de abril!”) e em frases instigantes e provocativas, tais como: “se quiser roubar, roube hoje; amanhã pode ser ilegal”, ou “não podemos resistir às tentações: elas podem não voltar”, entre centenas de expressões publicadas pelo intelectual carioca.
Vinícius de Moraes, quando jovem, num exame escrito, traduziu o lema em latim da bandeira do Estado de Minas Gerais – libertas qaue sera tamem – por “liberta que serás também!”; foi reprovado, mas viveu a vida inteira sustentando que repetiria a tradução.
Pois são essas tiradas, essas sacadas, que podem ajudar a alterar o nosso incômodo cotidiano. Até porque servem para medir as reações das pessoas, para o bem e para o mal. Por isso, talvez, Arroio Grande não fique alheio aos posts do AGDEPRÊ, que, se incomodam alguns, bem revelam a presença de espírito da gurizada que faz valer o seu momento de rebeldia, contestando a velha fórmula de viver da pequena aldeia.
Uma fórmula que para eles, jovens, é cansativa, repetitiva, chata. E chatice ninguém agüenta, é necessário combatê-la, assim como é preciso combater os chatos.
Por falar nisso, lembro de uma ocasião em que o meu pai – um extraordinário frasista – diante de um chato que não nos deixava conversar num bar, propôs, com evidente ironia: “Olha, fulano, nós temos aqui uma regra, quem quiser participar da turma tem que ser o último a sair, nem que seja no raiar do dia”. O homem, assustado diante daquele monte de borrachos, nem disfarçou e logo deu um jeito de ir embora. Aplaudido por ter conseguido nos livrar do chato, o Pedro justificou: – “Não tinha o menor perigo de ele ficar. Chato que é chato incomoda, mas jamais fica para pagar a conta”.
Sei não, mas conheço chatos que são capazes até de pagar a conta apenas para continuar chateando. No AGDEPRÊ, aliás, até os chatos costumam ser chatos para além da conta.

2 comentários:

Anônimo disse...

Gostei, principalmente da afirmação de que "o mundo precisa de maior irreverência para combater a mediocridade". É verdade, para cada Steve Jobs que o mundo perde nascem milhões de pessoas fadadas a fazer tudo sempre igual, isso quando não se tornam uns chatos "para além da conta", como você escreveu.
Parabéns pelo seu texto.

Pedro Jaime Bittencourt Junior disse...

Certamente Steve Jobs é uma exceção, mas o mundo necessita realmente dessa força que possuem as pessoas excepcionais; mais ainda, precisa de ousadia, irreverência e presença de espírito (este, aliás, o espírito do texto).
Obrigado pelas palavras, apareça quando quiser e, se puder (por quê não?) identifique-se.