domingo, 29 de março de 2020

O BANCO DO BAR DO BIBICO



Entre os pecados que a gente comete ao longo da vida, existem alguns impublicáveis e outros que podem ser revelados aos poucos, como um pequeno furto, por exemplo.
O furto, todos sabem, é crime previsto no Código Penal – artigo 155 – com prescrição em quatro anos. Pois eu cometi um furto, um crime praticado há quase quatro décadas, quando furtei um banco de madeira do Bar do Bibico.
É um banco estilo “mocho”, com uma pintura em azul e preto, hoje já evidentemente desbotada, como somente eu posso declarar, pois que guardo a prova do meu crime intacta, no original, ao longo de quase quarenta anos.
O banco foi furtado, obviamente, pelo seu valor sentimental, já que foi retirado num impulso do Bar do Bibico, lugar onde eu passei inesquecíveis momentos da minha mocidade.
O Bar do Bibico, para quem não sabe, ficava na esquina da Rua Zeca Maciel com a Francisco de Paula Alves, e funcionava todas as madrugadas, com a cerveja bem gelada, uma clientela bastante eclética e a melhor música da cidade. Durou mais de 25 anos, de 1980 até 1997, se não estou enganado.
Sujeito quieto, tranquilo, extremamente gentil, Aldírio Jerônimo Freitas, o Bibico – também um ex-centroavante de mão-cheia – possuía (e ainda possui, pelo que sei) um apurado gosto musical, e era no seu Bar, e somente nele em todo o Arroio Grande, que a gente podia escutar Vinícius de Moraes, Tom Jobim, Caetano Veloso, Chico Buarque e músicos alternativos como Taiguara, Jorge Mautner ou Jards Macalé.
No lugar acanhado – uma pequena peça de esquina – a gente podia ouvir os discos em vinil do Bibico e outros que os clientes levavam. A regra era ficar em pé, encostado no balcão, mas dava também para sentar numa das poucas cadeiras da única mesinha do Bar. Alternativamente, havia dois ou três bancos que ficavam próximos à porta de entrada. E foi um desses bancos que eu furtei.
No banco do Bar do Bibico sentei eu, sentou o Donga, sentou o Nadir, que sempre que saía da Top Set passava por lá para tomar uma saideira. No banco do Bar do Bibico sentou o João Bimbim, sentou o Marca Diabo, sentou o Pajá, um preto velho, de nome Osmar dos Santos Cardoso, que me deixou a eterna frustração de jamais tê-lo convencido a conhecer o mar, negando-se a viajar comigo para a Praia do Hermenegildo.
No banco do Bar do Bibico sentou o meu irmãozinho Tuíca, e sentaram outros irmãos que fiz, como o Basílio, o Lila, o Plínio... No banco do Bar do Bibico sentaram grandes músicos e artistas locais, e algumas gurias da nossa sociedade que, não raro, se “extraviavam” dos próprios namorados pelo prazer de dar uma fugidinha e beber uma gelada às escondidas no “cult-noir” que era o Bar do Bibico.
Pois esse banco eu não queria perder, assim como não quero perder da memória o tempo que passei por lá, pelo Bar do Bibico, um lugar que trouxe para mim inúmeros ensinamentos que somente a vida é capaz de proporcionar.
Porque o Bar do Bibico me deixou a lição suprema de que um furto pode revelar bem mais do que a simples ilegalidade; um furto pode conter afeto, carinho e ternura, sentimentos que, ao contrário do crime, são imorredouros e não prescrevem jamais...

sexta-feira, 27 de março de 2020

FIM DE SEMANA NO ARROIO GRANDE (para dantes do confinamento, para quarenta anos atrás...)


Bueno… Se essa dor no joelho não passar, azar, não vou deixar de sair hoje. A gente deve ficar em casa quando tem motivo. Para não pegar uma gripe forte e não transmitir para os outros, por exemplo… Mas hoje é sexta-feira e a programação promete. O Arroio Grande cresceu muito neste início dos anos 1980... Para começar, vou aproveitar esse princípio de noite e comer um lanche no novo bicão da pracinha. Aquele cachorrão com a ervilha escorrendo junto à maionese quente e empapando o saquinho que protege o pão. Para depois a gente lamber a embalagem e as gurias acharem nojento. Loco de bom! O Paulinho do Kbção adora. E ainda vem com duas salsichas! Dali, estômago forrado, vou até o Dovinha comentar o jogo da tarde com os guris… Mas, voltando ao Cabeçãozinho, quando é que ele vai nos convidar pra comer camarão à milanesa no Nacib novamente? Que coisa boa! E o Adão Miranda ainda pode se empolgar e cantar um bolero à capela. “Tanto tiempo disfrutamos de este amor, nuestras almas se acercaron tanto asi, que yo guardo tu sabor, pero tu llevas también, sabor a mí...”. Espetacular! Já me deu vontade de escutar música. É certo que depois do Bar dos Esportes vou dar a tradicional passada pela Top Set para encontrar o Basílio. (Sempre que saio de casa, aqui perto do presídio, em direção ao Centro, e passo pela Biblioteca Pública, fico pensando: será que um dia vai ter uma sala em homenagem ao poeta Leonel Fagundes ali? Ou será para o Lauro Machado a deferência? Ou para o louco do Pedro Bittencourt? Não, esse não, está bem vivo e é muito novo ainda...). Bom, se o Basílio estiver disposto, acaba pegando o violão, daí passamos para o salão do Forninho. Então cantaremos: “Vai, minh’alma vai, te esconde lá, onde o delírio destes tempos não tem mais lugar… Kênia...”. Que maravilha! Um beijo pra quem fica, América! E para beber, o que vai ser? Cachaça com butiá, cuba libre, um hi-fi, quem sabe wuisque – se o Edy do Solano der uma força, né, porque tá caro! – ou uma cervejada a rolê? Qualquer coisa o Eraldo pendura… Tudo, menos aqueles martinis e camparis que só o Bessa toma. Bebida doce, como é que pode!?! Mas o “Diabo” nem sempre está por aqui e já pode até ter se mandado para Pelotas atrás de um rabo de saia. Lá também é bom. Ainda mais que estão ganhando força os barzinhos nativistas e o louco tá começando a ficar conhecido no circuito… Mas hoje eu não posso ir, ainda mais com o Chevette queimando óleo e com o radiador vazando e colado com chiclete… Vou ficar pela terrinha mesmo. Volta é que não falta pra dar. Primeiro o bicão, depois o Dovinha, a Top Set… Será que nesta sexta-feira vai ter Mezanino? Se tiver, bingo! Todo mundo vai para lá. Bah, pena que a Studio 13 fechou faz pouco tempo. Ali era bucha, festerê garantido todo o final de semana. Aquele som meio psicodélico que o Vano colocava, o Zorginho Travolta dando show no centro do palco, uma mulherada na arquibancada, e a gente olhando aqueles trocinho e pensando que ‘tavam dando bola pra gente… Bah, mas sem pegar nada é brabo! O negócio é pensar em outra coisa para se alimentar no fim da noite, na hora que bater a larica... Outro lanche! Aonde? (Dizem que o Mauro Marques está pensando em abrir um bar, e que vai se chamar “Mostardão”. Bom, se o Alemão fizer isso, é outro que não se roga no violão, e deve encostar o Tuíca na cubana, daí o negócio vai se estender até de madrugada…). Ao encerramento, combalido, mas sinais vitais preservados, é certo que terminarei no Bibico, o tradicional fim de linha antes de voltar para casa. E ali, lá pelas cinco da manhã, vou pedir pro Jerônimo rodar Terra, ou Cajuína (“existirmos a que será que se destina”) do Caetano Veloso, ou alguma coisa dos Mutantes ou do Jards Macalé, naqueles elepês que só ele tem…

DOS LUGARES DO ARROIO GRANDE...



Em 24 de março de 2008, há doze anos, portanto, Arroio Grande comemorava os seus 135 anos de emancipação política, num cenário bem diferente deste de agora, com festa, música e o lançamento de um livro que marcou época na cidade.
Abre parêntese: a diferença de contexto, esclareça-se desde logo, a fim de evitar maledicências, deve-se, por óbvio, a pandemia do novo coronavírus, que impede, hoje, qualquer celebração pública na cidade, como de resto impede que se festeje qualquer coisa no país inteiro. Fecha parêntese.
O livro, por mim idealizado e organizado, foi escrito em parceria com outros autores da localidade, e teve uma evidência bem maior do que se esperava, tornando-se um sucesso absoluto.
O Treze lugares e meio do Arroio Grande e outras referências foi realmente um marco na literatura local, pois ali os escritores amadores, os pesquisadores e os historiadores paroquianos perceberam que era possível produzir e publicar algo sobre a nossa cidade, já que existia, sim, um público ávido por conhecer as coisas da “Terra de Mauá”, um lugar com a sua historiografia pouco divulgada, não obstante o esforço de autores como Álvaro O. Caetano, que editou o seu “Município de Arroio Grande”, no ano de 1945, e de Flávia da Conceição Corrêa, organizadora da revista “Tempos”, no ano de 2004. (O jovem Victor Faria Schroder publicaria o seu “A produção do espaço: Geografia histórica da cidade de Arroio Grande – RS”, em Pelotas, também no ano de 2008).
Mas o 13,5 lugares do Arroio Grande e outras referências optou pelo registro através de um outro gênero, a crônica (foram quinze delas), que permite a narrativa curta, liberando a imaginação, mas sempre dentro da perspectiva histórica proposta.
A obra, lançada há exatos doze anos, esgotou rapidamente os seus exemplares, valendo repetir as palavras do organizador ao seu encerramento: “Um livro raro e ao mesmo tempo simples, uma obra que envolve, mas que também liberta, um trabalho que transcende a todos que dele participaram, e que, apesar de modesto, deixa um verdadeiro legado à memória e a história do Arroio Grande. Quem viver, apreciará!”.
O traço do Donga para ilustrar a crônica sobre o "Redondo da Praça", 
criação do bruxo Edu Caboclo Damatta no Treze Lugares