domingo, 22 de janeiro de 2012

HERMENEGILDO-TESTEMUNHO(I)

HERMENEGILDO
Fernando Rosa Grassi

Durante quatro dias, experimentei as solidões da praia do Hermenegildo, na casa do amigo Pedro Jaime Bittencourt. A praia, simples e agradável, fica a poucos quilômetros do ponto que marca o fim geográfico do Brasil, o Arroio Chuí. A vila estava quase deserta num mês de março quente e seco. O dono da casa é advogado-poeta ou poeta-advogado. Mais poeta que advogado, penso eu. Naquelas lonjuras, ele fica boa parte do ano, num exílio voluntário. Alguns poucos fugitivos mais fazem-lhe companhia, formando uma comunidade insólita, atípica e original. Optaram por um isolamento incrível, mas lírico.
Um desses estranhos personagens era funcionário do Banco do Brasil em cidade distante. Tinha mais de quinze anos de casa. Certo dia tomou emprestado o carro de um colega e foi visitar sua terra natal, Arroio Grande. Após misteriosa conversa com Pedro Jaime, telefonou para o amigo propondo uma troca invulgar. Ele ficaria com o carro que trouxera e o colega tomaria posse da casa de sua propriedade, na cidade onde trabalhavam. Proposta aceita, tratou de exonerar-se do banco e refugiou-se na praia do Hermenegildo, de onde raramente sai. E lá está ele. Há mais de dez anos.
Mas as singularidades não são privilégios dessa bizarra e espontânea congregação. A casa de Pedro Jaime apresenta notável excentricidade. As paredes externas estão inteiramente cobertas por pinturas e desenhos que vão desde o academicismo clássico até o mais descomedido surrealismo. Na fachada, canto superior direito, uma indicação: “Rua da Maré Vermelha – nº Único”. De longe a casa chama a atenção pelo inusitado. No interior, as paredes e o forro da parte social tem a superfície totalmente ocupada por versos, pensamentos, frases de conteúdo, ora provocando o riso, ora desafiando a inteligência. Quase tudo é de autoria do ilustre dono. Essa literatura-mural já está invadindo os quartos e, por certo, tomará conta dos banheiros.
O piso de entrada, ao abrir-se a porta, num retângulo negro que avança para o interior da sala foram pintadas várias flores. Entre elas, em letras amarelas, lê-se: “Entra. Quero que minhas flores te conheçam... Não passa agora. Pára. Observa o teu corpo ficar inalterado. Segue então a canção das flores; vida a deslizar sob os teus pés”.
Já disse o genial Chesterton que “o doido é aquele que perdeu tudo, menos a razão”. Por isso, ninguém pode tirar conclusões apressadas sobre a forma de vida, a idiossincrasia de Pedro Jaime e sua irmandade de exilados. Deve-se aceitá-los, se não se puder entendê-los.
(Publicado no jornal A Opinião Pública, de Pelotas, em 09.04.1989)

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