HERMENEGILDO (final)
Fernando Rosa Grassi
Sentem-se bem quando, encerrado o veraneio, vivem uma verdadeira colônia de asilados. Aliás, só então vivem com maior intensidade, solitários, naqueles ermos. Quando a população da vila rareia ao extremo, são eles os donos de tudo. Possuem a terra e o céu, o mar e os peixes, o vento e a solidão, pois tudo isso é de ninguém.
Nessa época atingem o nirvana. Não há vizinhos, nem banhistas, nem nada que agite essa sociedade meio absurda, mas real e, por esquisita, fascinante. Se o dinheiro escasseia, o mar provê a despensa. Mas tudo isso não seria possível se todos fossem contemplativos e poéticos pensadores. Gente pouco prática, geralmente. Eles têm um parceiro que garante a existência da extravagante associação. É o Roger. Roger é o executivo, o primeiro-ministro. É ele quem faz as compras, que pesca, cozinha, lava e arruma tudo. Providencia o mate e o aperitivo. Troca uma lâmpada e conserta a fechadura. E quando a noite desce, ainda anima as tertúlias, declamando, em perfeito espanhol, lindas poesias com sentimento incomum. Sem ele, não sei se seria possível a reunião, em tais circunstâncias, de pessoas tão extraordinárias. Não teriam tempo, acredito, nem para pensar, debater e escrever frases e poesias pelas paredes. Como estas:
“Errada não é a cigarra que não trabalha; errada é a formiga que não canta”.
“O perdão tirou toda a graça do pecado”.
“Lamento muito, mas um dia eu tenho de deixá-los... Quando isso ocorrer, por favor, não me levem a mal... Desde já declaro que partirei absolutamente contrariado”.
“Basta amar-te para ser menino”.
“Todo avô é apenas o neto que ficou mais velho”.
“Posso dar-te um livro, uma flor, um beijo... coisas de que gostas... Mas a felicidade eu não te posso dar... porque a felicidade que eu tenho és tu... e se eu te der para ti, fico pobre... pobre... pobre...”
“Sou o último menino que me resta... Não permitam que ele cresça”.
“Até partir não quero envelhecer”.
“O dilúvio não deu resultado. O mundo continua igual”.
Só um louco pode ser sempre feliz. Não me lembro quem afirmou essa verdade. Acho que foi um russo. Realmente, a frase fica muito bem na boca de um personagem de Dostoievski. Não se pense porém, que os integrantes do estranho congresso que se reúne na praia do Hermenegildo tenham alcançado tal grau de alienação.
Mesmo à distância continuam ligados ao mundo. Escolheram uma vida simples e sem complicações. Reduziram ao mínimo ou a zero a cota de vaidades comum a todos os homens. Vivem essencialmente livres.
Liberdade! Esta é a palavra-chave. Junte-se a natureza à liberdade e, creio, está decifrada a receita para comportamentos aparentemente enigmáticos.
Pedro Jaime é um poeta de rara sensibilidade, como dizem os críticos literários. Mas ninguém vive só de poesia. E, volta e meia, como advogado, está envolvido no emaranhado de processos judiciais, por onde passam todas as misérias morais dos habitantes deste vale de lágrimas. Mesmo à beira-mar, posso imaginá-lo, cismarento, pensando como qualquer normal, em tudo o que poderia ter sido e não foi.
Alguém já disse, gracejando, que Pedro Jaime é um E.T., expatriado de seu planeta de origem, por inadaptação social. Não duvido. Talvez tenha difundido por lá as idéias que Proudhon, Bakunin e Kropotkin andaram espalhando por aqui. Talvez, às vezes, sinta terna saudade de sua querência estelar. E uma pergunta fica sem resposta: por que teria escolhido a Terra?
Por fim, mais algumas pílulas douradas extraídas das portas e paredes do excelente relicário dos reclusos:
“Quem tem o mar na porta, conversa com o sol pela janela”.
“Se eu morasse em teu olhar, fechava a porta por dentro”.
“Bem feito que eu te adoro”.
“Que a foice não ceife a flor, nem o martelo quebre a viola”.
“O furto é apenas uma recuperação parcial”.
“Desde que levaste a minha solidão, eu não consigo mais ficar sozinho”.
“A manhã que chega traz de volta o dia que se foi”.
“Sou louco e provo”.
Numa porta: “Se é para fechar-me, então por que me abres?”.
“Estou doente, doente de tudo. Dos olhos, da boca, nos nervos até. Dos olhos que viram mulheres formosas. Da boca, inchada de fumo e café. Estou doente, não posso escrever... Eu quero a doçura do verbo viver”.
“Quem não tenta voar, morre no chão”.
“Casar é bom, o diabo é permanecer casado”.
“Antes nunca do que tarde”.
“Quem proíbe o que é bom, torna-o muito melhor”.
“Só porque você tem 50 anos, não é obrigado a ter 50 anos”.
“A taça vazia não é doce nem amarga”.
“O verso mais triste é o que eu não soube dizer no momento em que te perdia”.
“Não há tempo mais feliz que o tempo que passou”.
“Tristes não são os que a tristeza tem, Encerrada em seu olhar tristonho; Tristes são os que sonham com alguém, Que existe apenas em seu próprio sonho”.
“Acordas em mim o menino, Que há muito tempo o destino, Levou prá longe de mim...”
Acreditem, eu vi e dou meu testemunho. Que magnífico Templo para tão formidável confraria!
(Publicado no jornal A Opinião Pública, de Pelotas, em 13.04.1989)
Fernando Rosa Grassi
Sentem-se bem quando, encerrado o veraneio, vivem uma verdadeira colônia de asilados. Aliás, só então vivem com maior intensidade, solitários, naqueles ermos. Quando a população da vila rareia ao extremo, são eles os donos de tudo. Possuem a terra e o céu, o mar e os peixes, o vento e a solidão, pois tudo isso é de ninguém.
Nessa época atingem o nirvana. Não há vizinhos, nem banhistas, nem nada que agite essa sociedade meio absurda, mas real e, por esquisita, fascinante. Se o dinheiro escasseia, o mar provê a despensa. Mas tudo isso não seria possível se todos fossem contemplativos e poéticos pensadores. Gente pouco prática, geralmente. Eles têm um parceiro que garante a existência da extravagante associação. É o Roger. Roger é o executivo, o primeiro-ministro. É ele quem faz as compras, que pesca, cozinha, lava e arruma tudo. Providencia o mate e o aperitivo. Troca uma lâmpada e conserta a fechadura. E quando a noite desce, ainda anima as tertúlias, declamando, em perfeito espanhol, lindas poesias com sentimento incomum. Sem ele, não sei se seria possível a reunião, em tais circunstâncias, de pessoas tão extraordinárias. Não teriam tempo, acredito, nem para pensar, debater e escrever frases e poesias pelas paredes. Como estas:
“Errada não é a cigarra que não trabalha; errada é a formiga que não canta”.
“O perdão tirou toda a graça do pecado”.
“Lamento muito, mas um dia eu tenho de deixá-los... Quando isso ocorrer, por favor, não me levem a mal... Desde já declaro que partirei absolutamente contrariado”.
“Basta amar-te para ser menino”.
“Todo avô é apenas o neto que ficou mais velho”.
“Posso dar-te um livro, uma flor, um beijo... coisas de que gostas... Mas a felicidade eu não te posso dar... porque a felicidade que eu tenho és tu... e se eu te der para ti, fico pobre... pobre... pobre...”
“Sou o último menino que me resta... Não permitam que ele cresça”.
“Até partir não quero envelhecer”.
“O dilúvio não deu resultado. O mundo continua igual”.
Só um louco pode ser sempre feliz. Não me lembro quem afirmou essa verdade. Acho que foi um russo. Realmente, a frase fica muito bem na boca de um personagem de Dostoievski. Não se pense porém, que os integrantes do estranho congresso que se reúne na praia do Hermenegildo tenham alcançado tal grau de alienação.
Mesmo à distância continuam ligados ao mundo. Escolheram uma vida simples e sem complicações. Reduziram ao mínimo ou a zero a cota de vaidades comum a todos os homens. Vivem essencialmente livres.
Liberdade! Esta é a palavra-chave. Junte-se a natureza à liberdade e, creio, está decifrada a receita para comportamentos aparentemente enigmáticos.
Pedro Jaime é um poeta de rara sensibilidade, como dizem os críticos literários. Mas ninguém vive só de poesia. E, volta e meia, como advogado, está envolvido no emaranhado de processos judiciais, por onde passam todas as misérias morais dos habitantes deste vale de lágrimas. Mesmo à beira-mar, posso imaginá-lo, cismarento, pensando como qualquer normal, em tudo o que poderia ter sido e não foi.
Alguém já disse, gracejando, que Pedro Jaime é um E.T., expatriado de seu planeta de origem, por inadaptação social. Não duvido. Talvez tenha difundido por lá as idéias que Proudhon, Bakunin e Kropotkin andaram espalhando por aqui. Talvez, às vezes, sinta terna saudade de sua querência estelar. E uma pergunta fica sem resposta: por que teria escolhido a Terra?
Por fim, mais algumas pílulas douradas extraídas das portas e paredes do excelente relicário dos reclusos:
“Quem tem o mar na porta, conversa com o sol pela janela”.
“Se eu morasse em teu olhar, fechava a porta por dentro”.
“Bem feito que eu te adoro”.
“Que a foice não ceife a flor, nem o martelo quebre a viola”.
“O furto é apenas uma recuperação parcial”.
“Desde que levaste a minha solidão, eu não consigo mais ficar sozinho”.
“A manhã que chega traz de volta o dia que se foi”.
“Sou louco e provo”.
Numa porta: “Se é para fechar-me, então por que me abres?”.
“Estou doente, doente de tudo. Dos olhos, da boca, nos nervos até. Dos olhos que viram mulheres formosas. Da boca, inchada de fumo e café. Estou doente, não posso escrever... Eu quero a doçura do verbo viver”.
“Quem não tenta voar, morre no chão”.
“Casar é bom, o diabo é permanecer casado”.
“Antes nunca do que tarde”.
“Quem proíbe o que é bom, torna-o muito melhor”.
“Só porque você tem 50 anos, não é obrigado a ter 50 anos”.
“A taça vazia não é doce nem amarga”.
“O verso mais triste é o que eu não soube dizer no momento em que te perdia”.
“Não há tempo mais feliz que o tempo que passou”.
“Tristes não são os que a tristeza tem, Encerrada em seu olhar tristonho; Tristes são os que sonham com alguém, Que existe apenas em seu próprio sonho”.
“Acordas em mim o menino, Que há muito tempo o destino, Levou prá longe de mim...”
Acreditem, eu vi e dou meu testemunho. Que magnífico Templo para tão formidável confraria!
(Publicado no jornal A Opinião Pública, de Pelotas, em 13.04.1989)
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