sexta-feira, 12 de março de 2010

TESTAMENTO

Eu tinha feito as contas certa vez e havia decidido que queria morrer quando os meus filhos estivessem próximos dos trinta, trinta e cinco anos de idade, mais ou menos. Levando em consideração a idade que eles têm hoje, isso significa que - soma isto, tira aquilo, vai tanto... -, matematicamente me sobra muito ainda, pois tal só deverá(ia) ocorrer depois que eu tiver ultrapassado os setenta anos, já velho, naturalmente, como é inevitável que fiquem as pessoas que alcançam essa idade.
Setenta e poucos anos... não é muito, e todos que estão nessa faixa podem e devem querer ir mais longe. Não é realmente uma boa idade para se morrer, embora seja uma idade complicada para se viver, com toda a certeza: as dificuldades aumentam, as dores são mais freqüentes e aqueles que são “geneticamente” rabugentos como eu, tendem naturalmente a ficar insuportáveis no convívio com as pessoas.
Setenta anos... Tenho amigos que estão próximos dessa idade, e muitos, mas muitos das minhas relações já ultrapassaram e bem tal marca.
A minha família, aliás, é de longevos: os meus avôs chegaram próximos aos 80, o meu pai, apesar de fazer tudo em contrário – cigarro, bebida, desregramento, indisciplina... – (ou talvez até por isto) passou dos 70, arranhando, mas passou, e a minha mãe, aos 75 anos, embora doente, ainda espera todos os dias pelos filhos e netos ali na Júlio de Castilhos, onde mora já há quase meio século.
Mas fenômeno, fenômeno mesmo foi a minha avó Delícia, que, mesmo não sei com quantos infartos, derrames e isquemias, permaneceu deste “lado de cá” até os 96 anos de idade.
Noventa e seis anos. Que força, quanta grandeza... Quando eu olhava para os olhos daquela mulher, quando segurava às mãos dela, eu via toda a nossa história ali: via o meu avô, castelhano, ranzinza, teimoso; via o meu pai, poeta, sonhador, teimoso; via a mim mesmo, acima de tudo teimoso; via os meus filhos, o futuro deles, os netos que ainda não tenho; eu enxergava tudo, tudo, nos olhos quase centenários da minha avó.
Não conseguia entender do que ela ainda gostava, não imaginava do que a sua alma se alimentava, que prazeres ainda poderia sentir aos noventa e seis anos de idade. Sei apenas do amor que tinha por ela e da emoção que sentia a cada vez que a olhava nos olhos, a cada vez que segurava as mãos carregadas de marcas que o tempo de quase cem anos deixou.
A matriarca de uma família de teimosos, de gente que se orgulha da sua história, uma história que remonta certamente há meio milênio (onde estarão os demais galhos dessa árvore?) e da qual a minha avó simbolizou e representou quase um século.
Cem anos... parece ser muito tempo, tempo demais, exigência demais pra um único corpo, e, com certeza, pra almas pecaminosas como a minha.
Por isto, já fiz os cálculos, todas as contas, definitivamente.
Diferente de muitos que querem ir mais longe, pra mim servem dezessete anos mais, dezoito, vinte, no máximo, a partir de hoje, a contar de agora, deste instante, já!
Mas, pensando bem, com direito a recontagem se chegar lá...

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